terça-feira, 28 de agosto de 2012

Censo se aprimora e detecta resistência dos índios: crescimento de 205% em 20 anos

Mudanças no questionário e na logística fazem levantamento do IBGE se aproximar melhor da realidade indígena no Brasil e até registrar etnias que já eram consideradas extintas. Estatística maior revela, principalmente, mais consciência e disposição de luta pelos direitos

Marcio Maturana

Qual a cor da sua pele? Branca, preta, parda, amarela? Os brasileiros em geral — inclusive muitos índios — respondem uma dessas alternativas. É raro ocorrer-lhes apontar a cor da pele como “indígena”. Sobre raça ou etnia, consideram-se guarani, xavante ou ianomâmi, também em vez de “indígena”. Por isso, o censo divulgado este mês pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mudou o questionário e conseguiu aproximar-se melhor da realidade. Resultado: dos 294 mil índios detectados em 1991, primeira vez que foram incluídos na pesquisa, passou-se para 897 mil em 2010 (0,4% da população do Brasil). Crescimento de 205% em 20 anos, cinco vezes mais que o da população geral do país. O censo detectou 79 mil índios que não tinham optado por essa classificação, apesar de viverem em terras indígenas. Para esse grupo, perguntou-se também se eles se consideravam índios. Verificou-se até reconstrução de comunidades que supostamente não existiam mais, como os tamoios. Marcos Sabarú, da etnia tingui-botó, em Alagoas, aponta ainda outros fatores para o crescimento estatístico. Ele é coordenador da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.
— O censo foi aonde não ia. Nas cidades, encontraram mais índios porque tem crescido a migração de quem busca melhores condições de educação e saúde. Na zona rural, muitas comunidades passaram a se assumir como indígenas para lutar melhor contra a invasão de empreendimentos como rodovias e barragens. Há até gente que se diz indígena na ilusão de que vai conseguir alguma vantagem— disse Sabarú.
Para a Fundação Nacional do Índio (Funai), os números demonstram acertos da política governamental. O antropólogo Artur Nobre Mendes, coordenador-geral de Gestão Estratégica da Funai, cita como exemplo a preservação das línguas indígenas nas terras demarcadas.
— A grande maioria dos índios que mantêm sua língua vive dentro de terras indígenas. Dos que vivem fora, só 12% falam a língua. Dos que vivem dentro, 57% falam — observou Mendes.
Segundo o IBGE, 57,7% dos índios vivem em 505 terras indígenas reconhecidas pelo governo. Essas áreas equivalem a 12,5% do território nacional, sendo a maior parte na região Norte. Como mais da metade dos índios (63,8%) vivem em área rural, a situação é o inverso da de 2000, quando 52% estavam em área urbana. No Brasil todo, são 305 etnias, que falam 274 línguas. Para obter os resultados, o IBGE fez parceria com órgãos como Funai e Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que leva o Sistema Único de Saúde a 400 mil índios de 210 povos.
— Esses órgãos colaboraram nas discussões técnicas para elaboração dos instrumentos de coleta e na compatibilização das malhas territoriais — explicou a responsável pelas estatísticas sobre indígenas no IBGE, Nilza de Oliveira Martins Pereira.
Estimativas sobre a ­população indígena no Brasil em 1500, quando chegaram os ­portugueses, variam de 2 milhões a 5 milhões. Acreditou-se que o desaparecimento era inevitável quando chegaram a apenas 70 mil nos anos 1950, com extinção de 85% das línguas indígenas. Mas nos anos 1970 a situação começou a ser revertida como resultado de iniciativas históricas como a fundação da Secretaria de Proteção aos Índios, em 1910 (pelo marechal Cândido Rondon, bisneto de índios), substituída pela Funai em 1967, e a criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961 (idealização dos irmãos Villas Bôas e coordenação do antropólogo Darcy Ribeiro). Nos anos 1980, estabeleceu-se que a população indígena estaria salva da extinção se chegasse a 1 milhão de pessoas, próximo do número atual.


Discussões políticas recebem ênfase na cerimônia do Kuarup

Nos dias 18 e 19 deste mês, a cerimônia do Kuarup, no Parque Nacional do Xingu, ganhou um caráter mais político. Os índios estamparam faixas contra a construção da Usina de Belo Monte e outras ações consideradas lesivas a 16 povos indígenas. O senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), que em 2007 foi batizado como Krowajõ pela tribo craô no Tocantins, recebeu um documento dirigido à presidente Dilma Rousseff, lido por ele no Plenário.
— Preocupam-se com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/00, que transfere para o Congresso a responsabilidade pela demarcação de terras, e com a Portaria 303/12 da Advocacia-Geral da União (AGU), que permite grandes obras nas terras indígenas sem consulta a eles — disse Rollemberg.
Na opinião do senador, a Portaria 303/12 contraria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, e a PEC 215/00 é um retrocesso porque dificulta novas demarcações de terras.
Sabarú reforça as críticas:
— A portaria da AGU caça direitos previstos na Constituição. E a PEC 215/00 interessa ao agronegócio, pois no Congresso existe a bancada ruralista, enquanto nós temos dois ou três simpatizantes — alertou o tingui-botó.
Paulo Paim (PT-RS), como presidente da Comissão de Direitos Humanos, também tem debatido essas questões.
— O crescimento não é fruto apenas das políticas de governo, muito poucas, mas mostra principalmente a resistência dos índios. Muitos deles morrem ainda crianças, devido à falta de atendimento à saúde. Há também suicídios entre os jovens, devido à falta de perspectivas. É preciso avançar — afirmou o senador.
Para Paim, o Congresso tem deixado a desejar. O senador acredita que o Código Florestal, como foi aprovado, não interessa a índios nem a ninguém, por não garantir proteção ao meio ambiente. O novo Estatuto dos Povos Indígenas, segundo o parlamentar, não avança por pressão dos latifundiários. O estatuto em vigor foi elaborado em 1973, visando à “integração do índio à comunhão nacional”. Esse foi o raciocínio desde 1500, com catequização, colonização e até escravização. A lei ficou desatualizada com a Constituição de 1988, que estabelece respeito aos índios como povos distintos. O novo estatuto (Projeto de Lei 2.057/91) tramita há mais de 20 anos, sem previsão de conclusão.


Fontes da cultura brasileira correm risco de extinção

A herança indígena forma a cultura nacional com hábitos como banho diário, uso da rede de descanso, instrumentos musicais, artesanato, técnicas de cerâmica e métodos de pesca e plantio, além de alimentos como mandioca, milho, guaraná, palmito e tapioca. Na saúde, vem dos índios o emprego de vegetais e animais como fonte de cura natural, prática que se tornou alvo de pesquisadores estrangeiros e de contrabando biológico. No folclore, os índios deram ao Brasil seres fantásticos como o curupira, o saci-pererê, o boitatá e a iara. Mas a mais nítida influência está no vocabulário. Palavras indígenas como canoa, jacaré, carioca, pipoca, jaguar, caxumba, abacaxi, caipira e pereba são apenas algumas das muitas incorporadas à língua portuguesa. A contribuição se comprova também nos nomes de lugares, como Goiás, Sergipe, Paraná, Paraíba, Cuiabá, Ipanema e Iguaçu. E há ainda os nomes próprios: Iracema, Jandira, Cauã, Tainá.
Mas o antropólogo Mendes avisa que muitas dessas fontes culturais linguísticas estão em situação de risco.
— Pelo último censo, 23% das línguas indígenas (63 de 274) têm menos de dez falantes. Ou seja: são virtualmente extintas. Se o último falante morre, morre com ele uma construção de centenas ou até milhares de anos — disse.
As principais línguas tupis-guaranis foram sistematizadas já no início da colonização. O padre José de Anchieta, além de mais de 30 composições em tupinambá, escreveu A Gramatica da Língoa Mais Usada na Costa do Brasil, publicada em 1595, dois anos depois de sua morte. Hoje, o Museu do Índio, no Rio de Janeiro, registra e documenta línguas ameaçadas de extinção. Na opinião de Mendes, o programa terá de ser ampliado e fortalecido a partir do censo. O problema é que algumas línguas listadas como distintas, na verdade, são dialetos tão próximos quanto o português de Salvador e o de São Paulo. No século 17, o tupi deu origem à língua geral paulista, que chegou a ser falada por quase toda a população que integrava o sistema colonial brasileiro. Apesar da sua proibição em favor do uso obrigatório da língua portuguesa, em 1757, a chamada brasílica só começou a dar lugar à língua portuguesa no início do século 19. A língua geral amazônica, atualmente conhecida como nheengatu, ainda hoje é falada na região da bacia do rio Negro.

Números revelados pelo IBGE

Diferentemente das edições de 1991 e 2000, o Censo de 2010 — cujo recorte indígena foi divulgado este mês — informa sobre terras indígenas, etnias e línguas faladas pelos indígenas residentes no Brasil. Povos isolados, pelas limitações da própria política de contato com objetivo de preservá-los, não foram entrevistados e não estão contabilizados
 
Clique na imagem a seguir para ampliá-la e obter mais informações



Veja também:

Censo 2010 — características gerais dos indígenas (IBGE):
http://bit.ly/caracteristicasIndigenas
Mapa interativo da população indígena:
http://bit.ly/terrasIndigenas
Quadro geral dos povos indígenas do Brasil (etnias, famílias liguísticas, informações demográficas):
http://bit.ly/quadroGeral
População indígena em quadrinhos (IBGE):
http://bit.ly/quadrinhosIndios
Manifesto dos povos do Xingu à presidente Dilma Rousseff:
http://bit.ly/manifestoXingu
Estatuto dos Povos Indígenas (Lei 6.001/73):
http://bit.ly/lei6001

Veja as edições anteriores do Especial Cidadania em www.senado.gov.br/jornal

Jornal do Senado

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