quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Íntegra da palestra de Sarney na Espanha: Centenário de Jorge Amado


Com muita emoção falo nesta Casa de quase 800 anos, que é, na proclamação de Dom Miguel de Unamuno, “el templo de la inteligência”. Quando soou o grito de Unamuno vivia-se um tempo de tragédia, com a Espanha dividida; falo hoje num momento em que ela vive uma grande crise. Mas deixem-me dizer-lhes de minha certeza de que Espanha é imortal, de quantas vezes já mostrou sua capacidade de superação. Daqui irei a Cádiz, para celebrar os 200 anos de uma Constituição feita num país atormentado pelo invasor e que foi — continua sendo — um modelo para a liberdade no mundo.
 Mas quero citar ainda Unamuno, neste livro que li ainda jovem e que é uma obra-prima — Del sentimiento trágico de la vida: “Un hombre, un hombre vivo y eterno, vale por todas las teorías y por todas las filosofías.”
Pois Jorge Amado foi um homem, vivo e eterno, e um homem que, em sua grandeza, não será esquecido. É com certo sentimento de ausência — uma ausência que, para mim, é uma memória indelével, que não se apaga nem se apagará jamais — que venho aqui comemorar os seus 100 anos de nascimento, ocorrido no dia 10 de agosto de 1912. Esta ausência se manifesta um pouco naquela que dizem ser a palavra mais bela da língua portuguesa, saudade, cuja melhor definição que eu conheço é aquela que diz: é uma vontade de ver de novo. Saudade não é añoranza. É um sentimento muito português e brasileiro, mas também galego, definida por Rosalía de Castro — a maior autoridade que podemos invocar — como “el fantasma del bien soñado”. É uma ausência, mas também uma presença, o sentimento de que o ausente está inteiro, íntegro, em nossa percepção do mundo.
Jorge Amado é a mais forte presença de escritor na vida brasileira, não só por sua obra inigualável, mas por sua capacidade de agir para construir o bem, e, na visão aberta do mundo, alcançar o coração de cada pessoa, cada leitor ou testemunha de sua vida e das mãos que, sempre aos cuidados de Zélia — Zélia Gattai, sua inesquecível companheira —, estendiam-se em grande generosidade. Ao dizer que é um escritor brasileiro, não posso fugir à verdade de quanto mais regional, mais universal, na expressão de Read.
É difícil dizer novidade de Jorge Amado. Difícil porque dele tudo já falaram. Difícil para mim que fui seu estreito amigo durante toda a vida, porque desperta um batimento mais forte no coração, que toca pela admiração, e toca mais pelo fascínio de sua personalidade e obra. Ele foi uma força da natureza que desceu muito cedo do Norte — assim era a denominação genérica de Norte e Nordeste do Brasil no começo do século XX — para dominar a literatura brasileira.
Eu o li muito moço: o poeta Bandeira Tribuzzi, meu companheiro de mocidade, que queria levar-me para o marxismo, me passou, enrolado num papel de embrulho, de um tipo grosso que já desapareceu do mercado, mas era o único daquele tempo, com prazo fixo de uma semana para ler e depois devolvê-lo para outros que estavam sendo aliciados, como coisa escondida e procurada pela polícia, O Cavaleiro da Esperança, o livro sobre a vida de Prestes, o fundador e lendário chefe do Partido Comunista do Brasil. Comovi-me com o livro e acompanhei a história da Coluna Prestes, de cujos dissolvidos machados de pedra eu ouvira na minha peregrinação pelo interior de meu estado, o Maranhão. Fora uma marcha épica de milhares de quilômetros pelos sertões do Brasil, fugindo da polícia e da natureza. Li também a esse tempo o ABC de Castro Alves. A sedução de Tribuzzi e da obra de Jorge era forte, mas minhas convicções impediram-me de entrar para o Partido Comunista. Foi com esse começo dos livros engajados que iniciei minha leitura da obra de Jorge Amado pela vida inteira.
Quando o conheci pessoalmente já ele se afastara do PC. Ficamos amigos. Mas eu não esperava que acolhesse meu primeiro livro de ficção, O Norte das Águas, com um entusiasmo que ultrapassava o que podia esperar de sua fama. Os anos nos aproximaram mais, e me integrei ao seu universo familiar.
Às vésperas das festas nacionais pelos 80 anos de Jorge, ele publicou um livro delicioso, notável pela mistura de revelação pessoal e histórica, cheia de sabedoria envolta em poesia, Navegação de Cabotagem, talvez menos lido que sua obra de ficção, uma pena, as mais de 600 páginas correm macias. Pois, fechando o livro, Jorge dirige-se à esposa:
“Digo não ao discurso, à medalha, à fanfarra e aos tambores, à sessão solene, ao incenso, à fotografia de fardão ou em mangas de camisa exibindo as pelancas e a dentadura, não sou andor de procissão. Dá-me tua mão de conivência, vamos viver o tempo que nos resta, tão curta a vida!, na medida de nosso desejo, no ritmo de nosso gosto simples, longe das galas, em liberdade e alegria, não somos pavões de opulência nem gênios de ocasião, feitos nas coxas das apologias, somos apenas tu e eu.”
“Briguei pela boa causa, a do homem e a da grandeza, a do pão e a da liberdade, bati-me contra preconceito, ousei as práticas condenadas, percorri os caminhos proibidos, fui o oposto, o vice-versa, o não, me consumi, chorei e ri, sofri, amei, me diverti.”
Não podemos obedecer completamente a seu desejo. Mas pretendemos que nossa homenagem fale menos de glórias e títulos do que do ser humano que amava a vida e do escritor que a criou no imenso universo de seus personagens. Viver a vida, ao lado da amada, ele o fez, na casa que construiu no Rio Vermelho, na Bahia, e onde batiam os humildes e os poderosos, todos recebidos com o mote: “Se for de paz, pode entrar.”
Jorge foi um militante comunista que chegou a ser deputado constituinte. Costumo dizer que fascinou no comunismo ser uma ideia generosa. Pois essa visão homem igual, fraternalmente unido ao próximo, foi uma constante da vida de Jorge. Àqueles anos todos acreditavam que o caminho da salvação da humanidade era a ideologia.
Ele acreditou no regime comunista como um sistema que uniria os homens. Quando, antes ainda da revelação por Kruschev dos crimes de Stalin, descobriu que o caminho sacrificava a liberdade — estavam em Budapeste, em 1951—, sofreu. Vou citar Jorge de novo:
“O jovem poeta se exalta, […] diz que a confissão de um dos acusados — de todos, contam-me depois — foi arrancada à base de torturas praticadas nos cárceres pela polícia política. Devo ter ouvido mal, não falou tortura, certamente, o que foi que ele disse? — pergunto em dúvida, em agonia. Minha honra e meu orgulho consistem em saber, de certeza absoluta, que num regime comunista, numa sociedade socialista, jamais, jamais, nunca jamais, um preso poderá ser submetido à tortura…”
“Com febre e frio atravesso a primeira noite de duvida, o coração traspassado, o estômago embrulhado, ânsia de vômito: a polícia comunista me espanca e me pisoteia, obriga-me a confessar o que não fiz. Assim começou minha travessia do deserto.”
Jorge pagou um alto preço por sua independência, por — dizia — “pensar pela própria cabeça”. O patrulhamento ideológico correu alto e forte a anunciar sua decadência como autor, sua submissão à literatura de vendas, e a crítica a encontrar defeitos na sua obra. Na verdade Jorge continuou fiel a si mesmo, foi cada vez mais fiel ao ofício de sua obra de escritor.
Falar dela é falar também do autor. Jorge costumava dizer “está comendo as minhas carnes”, quando o processo da criação estava deslanchado no ritmo acelerado em que acordava cada vez mais cedo e passava a manhã batendo na máquina de escrever, e depois da sesta fazia revisão de textos — da versão bruta ou da datilografada por Zélia.
Havia assim um processo fisiológico, em que o escritor incorporava o universo dos seus personagens. Ele explica:
“Minha criação romanesca decorre da intimidade, da cumplicidade com o povo. Aprendi com o povo e com a vida, sou um escritor e não um literato, em verdade, sou um obá — em língua iorubá [— dos escravos africanos —] da Bahia obá significa ministro, velho, sábio, sábio da sabedoria do povo.”
Noutra página, narrando estória dos coronéis do cacau, conta:
“Eu aprendia os coronéis nas ruas de Ilhéus, os jagunços nas roças de cacau, cursava meus preparatórios antes de vir para as universidades dos becos e ladeiras da Bahia.”
Assim revelava ao mundo os milhares de personagens, mais de cinco mil. Mas estes se desdobram na fusão de gentes que forma cada um, de maneira que estamos todos retratados na sua obra, que acumula vida e humanidade. Pois o personagem de Jorge vive em plenitude, é gente, identificado na rua, nas casas, mesmo por quem não leu seus livros. E não penso aqui na sua presença na televisão ou no teatro ou no cinema, mas apenas naquela reverberação do ouvir contar, no mistério do passar de boca em boca.
Quantas vezes Jorge foi abordado, pessoalmente ou por carta, por pessoas que se julgavam retratadas em seus livros? E teimavam: “sou a Tieta”, “sou o Nacib”, “minha mãe era Tereza Batista”… Pouco adivinhavam da verdade, que, se cada personagem soma parte de várias pessoas, há alguém que é parte de todas elas: o próprio Jorge, que põe um pedaço de si mesmo nesse parto para que o personagem viva e — como costumava dizer  — ande por suas próprias pernas. Um exemplo contado pelo escritor.
“Pedro Archanjo é a soma de muita gente misturada” — todos de sua terra — “: o escritor Manuel Quirino, o babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim, Miguel Santana Obá Até, o poeta Artur de Sales, o compositor Dorival Caymmi e o alufá Licutã — e eu próprio, é claro. De todos eles Archanjo incorpora um traço, uma singularidade, a preferência, o tom da voz, o gosto da comida, o trato das mulheres e a malícia.”
Jorge fala muito da autonomia dos personagens, que reagem ao que queremos fazer com eles:
 “Um conto não se conta, não se explica e quanto ao personagem deve ser pessoa em carne e osso com sangue nas veias e miolo na cabeça, não um títere em mãos do romancista. Sinto que o personagem está posto de pé quando se recusa a fazer aquilo que não cabe no contexto de sua personalidade, acontece por demais, eu poderia escrever uma brochura contando casos sucedidos no decorrer de meu trabalho.”
Neste sentido, explica uma revolta de personagens de Tocaia Grande, que recusam o enredo traçado:
“Natário diz: — É o lugar mais bonito que existe para viver. Eu fazia Coroca responder: — E para morrer. Mas imediatamente Coroca reagiu, ela não diria isto, porque seria o fim, a negação de tudo.”
Jorge conta também em Navegação de Cabotagem como a cidade de Jandaíra, no norte da Bahia, divisa com Sergipe, onde foi filmada a novela adaptada de Tieta do Agreste, fez um plebiscito para mudar o nome para Sant’Ana do Agreste, o da cidade imaginada pelo autor, “pois — repito a justificativa apresentada a Jorge — fora em Jandaíra que Tieta vivera e armara tantas e boas”. E também diz ter lido nos jornais afirmação do cineasta Bruno Barreto de que pesquisara e descobrira que Nacib, personagem de Gabriela, “não era árabe, e, sim, italiano”.
Jorge afirma conhecer suas limitações de escritor, mas acrescenta:
“Sei também, de ciência certa, existir nas páginas que escrevi, nas criaturas que criei, algo imperecível: o sopro de vida do povo brasileiro. Não carrego vaidade, presunção, e  sim orgulho.”
Há uma evolução muito rápida entre seu primeiro romance, O País do Carnaval, de 1931, que Jorge Amado considerava estreito — e relutou muito antes de deixar que fosse traduzido, primeiro, para o italiano e, depois, para o francês — e Cacau, de 1933, livro que esteve proibido e esgotou suas duas primeiras edições em poucos dias. Cito a opinião do autor:
“… a descrição da vida dos trabalhadores rurais que faz Cacau é bem verdadeira; enquanto é absolutamente idealista, de um ponto de vista ideológico, a tentativa de aproximação entre os intelectuais e o proletariado a que corresponde o herói do livro.”
Em 1934 sai Suor, onde se volta para Salvador, que sempre chamava de cidade da Bahia. Em 35 sai Jubiabá, ao mesmo tempo em que as primeiras traduções, Cacau em espanhol, Cacau e Suor em russo. As traduções não parariam mais, enchiam as estantes de sua casa no bairro do Rio Vermelho até serem transferidas para a Fundação Casa de Jorge Amado, no Pelourinho, no centro histórico de Salvador. Volto a citar Jorge:
Jubiabá […] tanto do ponto de vista da concepção, da narrativa do romance, quanto do ponto de vista de uma concepção ideológica da história representa, eu diria, um passo adiante muito grande em relação aos romances [anteriores]. Em Jubiabá o problema de raça se coloca de uma maneira muito violenta até que, no fim do livro, Balduíno compreende que o problema de raça é, em primeiro lugar, um problema de classe.”
O ano de 1935 é também marcado por sua primeira prisão. No ano seguinte publica Mar Morto, história do mar da Bahia, dominado pelo romantismo do amor de Lívia e Guma. O livro contém sua colaboração musical mais famosa, É Doce Morrer no Mar, com a música de Dorival Caymmi:
“É doce morrer no mar,
Nas ondas verdes do mar,
Nas ondas verdes do mar, meu bem
Ele foi se afogar
Fez sua cama de noivo
No colo de Iemanjá.”
Parte para o primeiro exílio. Em 1937 sai Capitães da Areia, a denúncia da situação da infância desassistida do Brasil, que infelizmente continua a desafiar todos os governos em busca de uma solução. Eu considero que Capitães da Areia está no mesmo nível de Oliver Twist de Charles Dickens, quando ele trata da infância pobre e miserável de Londres — Jorge, aliás, era um fã ardoroso do escritor inglês, e dera a seu cão pug o nome de Mr. Pickwick.
Nota-se que, desde Cacau — em que recupera o trajeto do pai de Sergipe para o sul da Bahia em busca de fortuna com o fruto, e mostra pela primeira vez toda a teia de relações entre “coronéis” e “alugados”, a complexidade da produção, desde o desbravamento da terra para o plantio até os armazéns de exportação —, Jorge muda seu cenário para a cidade da Bahia, exposta na riqueza de seus temas, do cortiço do Pelourinho, em Suor, passando pela marginalidade social de Balduíno em Jubiabá — com a presença central, pela primeira vez, do candomblé —, pela vida dos pescadores em Mar Morto, e pela tragédia social em Capitães da Areia.
Jorge, como eu, não gostava do ditador do Brasil de 30 a 45, Getúlio Vargas. Durante sua ditadura sofrera inúmeras prisões, vivera os primeiros exílios e parte do terceiro — começado ainda no governo Dutra —, e percorrera o Brasil preso: em 1937, levado de Manaus ao Rio; em 1942, levado de Porto Alegre também ao Rio.

Durante os anos seguintes, marcados pela militância política, Jorge traduz vários livros, entre eles Doña Bárbara, de Rómulo Gallegos, chamado La Bonguera, que me marcou profundamente, e La Vorágine, de José Eustasio Rivera, outro livro extraordinário, fundamental na literatura sulamericana, marcante na história do realismo mágico. Sem a obra de Rivera talvez não tivéssemos Juan Rulfo com Pedro Páramo, talvez não tivéssemos, com toda a força do seu universo, Garcia Marquez.
Em 1941, quando sai o ABC de Castro Alves, parte para um novo exílio: vai escrever, na Argentina, a vida do líder comunista Luiz Carlos Prestes. Em 1942, a primeira edição da biografia é lançada em espanhol. O Cavaleiro da Esperança marcou gerações. Jorge Amado continuaria a respeitar Prestes até o fim da vida, embora se afastasse de suas posições, que ele classificava de sectárias.
Em seguida, entre a Argentina e o Uruguai, mas sobretudo em Montevidéu, escreve Terras do Sem Fim, que sai em 1943. Um texto de memórias explica a expressão:
“A cheia do rio Cachoeira, no ano de 1914, levou plantações, pocilga, a vaca, os burros e as cabras. Meus pais fugiram. Carregados com o menino, eles chegaram ao povoado com o que tinham sobre o corpo. Em Ferradas, não se sabia onde abrigar tantos refugiados. Nos mandaram ao lazareto, normalmente reservado aos leprosos e aos que tinham varíola, transformado em refúgio para as vítimas da inundação. O sol de cimento tinha sido lavado com alguns baldes d’água, lembrava minha mãe. Não havia outros recursos — nem medicamentos, nem enfermeiras ou médicos. Eram as terras do sem fim.”
Em 1942 tem residência fixada, pela ditadura, em Salvador. Escreve São Jorge dos Ilhéus, que sai em 44. O romance, explica, tem uma unidade temática com Terras do Sem Fim. E acrescenta:
“Para mim, estes livros representam uma evolução, de duas maneiras: inicialmente minha experiência humana progrediu. A visão das coisas é muito menos em branco e preto que nos seis livros anteriores. Eles possuem uma complexidade maior, as figuras dos coronéis, dos aventureiros são muito mais complexas […] Em segundo lugar, a narrativa é mais densa, é mais profunda sob certos aspectos…”
Essa é a primeira retomada do tema do cacau, a que, como veremos, voltará em Gabriela, Cravo e Canela e Tocaia Grande. A cada versão, esta evolução de complexidade que o autor registra.
Em 1944 escreve Bahia de Todos os Santos, um guia delicioso de Salvador, que é publicado no ano seguinte, com ilustrações de Manuel Martins. Atualizado em 60, 66 e 70, depois em 77, já com ilustrações de Carlos Bastos, o “guia de ruas e mistérios” é um mergulho na alma da cidade e em seus personagens, que Jorge conhecia tão de perto.
Com o fim da guerra e do regime ditatorial de Vargas, realiza-se em São Paulo o Congresso dos Escritores de 45, onde é uma das figuras centrais e contribui para a união de comunistas e liberais pela redemocratização. É quando acontece a descoberta que mudaria sua vida: surge Zélia, a companheira admirável, a grande escritora, a mulher extraordinária que é um exemplo que ficou para os brasileiros. Os dois formaram um casal cheio de amor, que recebia os amigos na casa do Rio Vermelho, feita dia a dia pelas mãos do casal, nos objetos que a enchiam, nas plantas do grande jardim, na mesa posta com fartura. Zélia foi o centro da vida de Jorge. Terminando Navegação de Cabotagem, Jorge escreve:
“Ainda meio dormido, às vésperas dos oitenta anos, estendo o braço, toco teu corpo, sinto teu calor, tua respiração. Amanhece, a luz do novo dia desponta tênue na barra da manhã, penso nos privilégios que detenho, mordomias. Teus olhos, teu sorriso, os seios, o ventre, a bunda, o coração, a inteireza, a decência, a mansidão, o devotamento. A vida nasce de ti na madrugada.”
E mais adiante:
“Sento-me contigo no banco de azulejos à sombra da mangueira, esperando a noite chegar para cobrir de estrelas teus cabelos, Zélia de Euá envolta em lua: dá-me tua mão, sorri teu sorriso, me rejubilo no teu beijo, laurel e recompensa.”
Em 1946 sai Seara Vermelha, em que o cenário muda para o sertão, a seca e o latifúndio. Jorge Amado, cada dia mais engajado na militância política, participa da redemocratização como Deputado Federal, mas logo é obrigado a partir para o exílio em Paris e depois no Castelo de Dóbris, na então Tchecoslováquia, da União de Escritores Tchecos. Aí escreve a trilogia Os Subterrâneos da Liberdade, contando os anos de perseguição e a miséria do regime ditatorial.
Já de volta ao Brasil, em 1958 publica Gabriela, Cravo e Canela, um romance que marca época, pela originalidade da linguagem, pela riqueza do enredo e pela exuberância dos personagens. Novamente alternara o foco de sua obra para o tema do cacau, destacando desta vez a decadência do poder dos “coronéis” diante dos exportadores, numa abordagem de romance de costumes. 
E mais uma vez sua obra se volta para a cidade de Salvador. Em 1961 saem em livro, com o título Os Velhos Marinheiros, duas novelas curtas, A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água e A Completa Verdade sobre as Discutidas Aventuras do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso. Sobre os vagabundos, em torno dos quais se passa o Quincas, Jorge escreveu:
“Eu comecei a frequentá-los quando, aos treze anos, fugi do internato dos Jesuítas e atravessei o sertão para Sergipe, até a casa de meu avô. Em seguida, eu me tornei amigo de tantos entre eles no curso de minha adolescência livre, na cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos.”
Durante o ano de 1964 sai Os Pastores da Noite, ainda histórias dos vagabundos da Bahia. Entre elas, esse hino à amizade que se dá entre o Cabo Martim e Curió em torno de uma jaca comida com os dedos. O cacau é plantado, como se sabe, à sombra de grandes árvores, muitas delas jaqueiras, e Jorge Amado passou a infância vendo o pai comer — e comendo — jaca antes do almoço.
Em 1966 publica Dona Flor e seus Dois Maridos. No amplo panorama da vida da cidade de Salvador da Bahia, muitos personagens são retratos quase diretos de seus amigos. Romance que tem extraordinária repercussão com seu toque de realismo mágico na convivência simultânea da protagonista com o marido vivo e o marido morto.

Tenda dos Milagres — que sai em 69 — mantém o foco dos dois romances anteriores na cidade da Bahia, mas retoma a discussão da influência negra na cidade, contando, com o personagem central, Pedro Archanjo, o conflito entre mestiçagem e racismo, entre a sabedoria aprendida na vida e as teorias livrescas. Jorge não discursa, como na juventude, mas, mestre da narrativa, constrói o retrato de um estudioso impregnado de seu povo:
“Na Tenda dos Milagres, Ladeira do Tabuão, 60, fica a reitoria dessa universidade popular. Lá está mestre Lídio Corró riscando milagres, movendo sombras mágicas, cavando tôsca gravura na madeira; lá se encontra Pedro Archanjo, o reitor, quem sabe? Curvados sobrevelhos tipos gastos e caprichosa impressora, na oficina arcaica e paupérrima, compõem e imprimem um livro sobre o viver baiano.”
“Ali bem perto, no Terreiro de Jesus, ergue-se a Faculdade de Medicina e nela igualmente se ensina a curar doenças, a cuidar de enfermos. Além de outras matérias: da retórica ao soneto e suspeitas teorias.”
Teresa Batista, Cansada de Guerra é publicada em 73. Para Jorge, é um livro marcado pela morte e pela luta contra o mal. Teresa Batista é, com a minha Saraminda, uma das raras protagonistas negras da literatura brasileira. Compartilho da visão que Jorge tinha sobre o papel do negro no Brasil. Ele dizia:
“Mais de uma vez escrevi que a África era nosso umbigo, por nossa sensibilidade, nossa maneira de ver a vida e o mundo, de reagir diante dos acontecimentos, de viver com os outros, de pensar e de agir.”
Eu estava com Jorge em Cabo Verde, em um palanque, junto com o Presidente Aristides Pereira, quando de repente vem aquela multidão com ramos na mão, sorrindo, tocando tambor. Aí, eu lhe disse: “— Jorge, vê quem vem ali.” Ele disse: “— É a Bahia.” E acrescentou: “— Isso mostra que da África foi que chegou a alegria brasileira.”
O livro seguinte é Tieta do Agreste, de 1977. Jorge transpunha para a fronteira da Bahia com o estado de Sergipe uma batalha perdida contra a implantação em Arembepe, uma vila de pescadores ao norte de Salvador, de uma indústria de dióxido de titânio, extremamente poluente. Por outro lado, mais uma vez mexia na estrutura do romance. Jorge declara:
“Glauber Rocha analisou o romance mostrando que através da polêmica entre o autor e o crítico — que constitui um tempo e um espaço à parte no romance — eu desmontava toda a estrutura do romance e mostrava seu mecanismo. Foi um prazer que me dei.”
Farda, Fardão e Camisola de Dormir, de 1979, é uma fábula sobre a candidatura de um militar à Academia Brasileira de Letras. Em 1981 era a vez de um pequeno relato biográfico, O Menino Grapiúna. Suas memórias começam quando, com um ano, testemunha um atentado contra seu pai. Ele conta:
“Por ter tanto ouvido minha mãe contar, a cena se tornou viva e real como se o acontecimento tivesse ficado gravado em minha memória: a mula caindo morta, meu pai, banhado em sangue, me levantando do chão.”
É a essa região do cacau, de guerras e emboscadas na disputa de terra entre os coronéis, que volta novamente em Tocaia Grande, de 1984. Quero me deter neste romance escrito depois dos 70 anos de idade por achar que ele é um exemplo da produção de Jorge Amado, que em nada perdera de sua força criativa, mas ao mesmo tempo acumulava o domínio técnico. O tema, que tratara em Cacau, Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus, Gabriela, Cravo e Canela, tem um tônus dramático que não desaparece diante das inúmeras passagens picarescas. Jorge afirma a intenção de contestar a história oficial da região:
“Digo não quando dizem sim em coro uníssono. Quero descobrir e revelar a face obscura, aquela que foi varrida dos compêndios de História por infame e degradante; quero descer ao renegado começo, sentir a consistência do barro amassado com lama e sangue, capaz de enfrentar e superar a violência, a ambição, a mesquinhez, as leis do homem civilizado. Quero contar do amor impuro, quando ainda não se erguera um altar para a virtude. Digo não quando dizem sim, não tenho outro compromisso.”
Abandonando maiores artifícios, a narrativa é direta, na franca progressão de “O Lugar” para “O Ponto de Pernoite”, daí para “O Arruado”, “O Lugarejo”, “O Povoado”, “O Arraial”, “A Cidadela do Pecado, o Couto dos Bandidos”, onde “Com a chegada da lei a Tocaia Grande, aqui se interrompe, ainda no começo, a história da cidade de Irisópolis”. Nesta transformação, o “lugar” da tocaia armada e executada pelo capitão Natário da Fonseca cresce à medida que perde a pureza das relações humanas forjadas na necessidade de sobrevivência coletiva.
A dualidade de visão é cedo apresentada pelo autor, descrevendo Natário:
“Para uns, criminoso, cabra desalmado, bandido sem entranhas; para outros, valente capitão, de natural bondoso, bem-querer das damas.”
Os primeiros a se fixar no lugar são o turco Fadul, mascate, a rapariga Jacinta, o ferreiro  Castor Aduim, a também rapariga Bernarda. Conta Jorge que Natário:
“…assistiu à chegada da primeira mulher-dama, Jacinta, mais conhecida por Coroca por ser de maior.”
Já Bernarda, que largara o “papa-cria”, surge vinda do rio:
“O vestido de bulgariana, ensopado em cima da pele, colava-se ao corpo escuro e o exibia; dos cabelos soltos escorria água, pingos no cangote.”
“Contas feitas na cabeça enquanto afrouxava a barrigueiras da sela, o Capitão concluiu que Bernarda devia andar entre os quatorze e os quinze anos. Vivesse em Ilhéus, seria mocinha tola, ainda brincando com boneca; ali, nas brenhas, mulher adulta, meretriz de porta aberta.”
Tição Abduim, de passagem por Tocaia Grande, deitado com Coroca, é despertado por um grito de dor. Era da amásia de clavinoteiro famoso, um dente a torturá-la. O negro se ofereceu. Narra Jorge:
“— Meu nome é Castor Abduim, me chamam de Tição por ser ferreiro. Já tive outros apelidos, posso lhe contar se um dia vosmicê quiser ouvir. Agora, vamos aliviar a sua dona. No mundo não há coisa tão ruim que se compare a dor de dente, é o que ouço dizer e repetir.”
A apresentação de Fadul é uma das primeiras do romance:
“Os mamoeiros, nascidos sobre as covas no improvisado cemitério, davam os primeiros frutos quando Fadul Abdala, tendo se perdido, descobriu aquela boniteza de lugar. Libanês de estatura agigantada, todo ele desmedido — mãos e pés, o arcabouço do peito e a cabeçorra —, ganhara nos cabarés de Ilhéus e Itabuna o apelido de Grão-Turco, mas nas estradas do cacau era conhecido por Turco Fadul ou mais simplesmente seu Fadu […]”
“Qual não foi sua surpresa ao constatar que Tocaia Grande deixara de ser um descampado. […] deu-se conta de que fora trazido pela mão de Deus. Enquanto se imaginava perdido, o Senhor o conduzia, guiava seus passos. Não para que ele folgasse num dia de descanso, como então pensara. Trouxera-o para lhe mostrar o lugar onde devia honrar o trato feito, cumprir o seu destino.”
Enquanto dá vida aos personagens, faz deles “pessoa em carne e osso com sangue nas veias e miolo na cabeça”, Jorge constrói a trama. O que acontece em Tocaia Grande não são reviravoltas e revelações surpreendentes, é a história já anunciada na página de abertura: “Antes de ser Irisópolis, foi Tocaia Grande.” A forma de avançar na narrativa é a de comprimir e descomprimir os episódios, nuns concentrando os detalhes que levantam, diante do leitor, um pedaço de vida que explica o universo ficcional não como aquele que ocupa outra dimensão, mas como parte de nossa experiência vital. É assim que vamos sendo capturados como testemunhas — não distantes, que veem espetáculo passado em cena, mas presentes nos acontecimentos mesmos.
É quase desnecessário dizer, diante da história de vida de Jorge Amado, que são tratados sem preconceito os vários grupos que participam da trama — capangas, tropeiros, prostitutas, sergipanos, coronéis etc. São eles que formam o povo de Tocaia Grande. Assim, a chegada de um grupo de ciganos no arruado provoca diversas ações — a argúcia, a esquiva, o engano — e reações — encantamento, interesse, revolta — todas tratadas com compreensão e naturalidade.
São raros os indivíduos que recebem condenação clara em seus retratos, como Venturinha — o filho do coronel Boaventura Andrade — que na chegada do Rio de Janeiro tem um pensamento que o domina, repetido em eco: “Todos ali eram servos seus.” Também nesse caso não se afasta o autor de sua revolta, mantida até o fim da vida, com a injustiça e com todos os que abusam do poder.
Em Tocaia Grande o escritor demonstra mais uma vez o total domínio da linguagem. Ora poético:
“Primeira construção a ruir e a ser tragada no caudal das águas, o velho palheiro, apodrecido pelo tempo, arrastou em seus destroços a memória de alegrias e tristezas.”
Ou:
“Na paisagem devastada, as cabras afirmavam a eternidade.”
Ora transitando do poético para o cômico:
“Quantas festas o sanfoneiro abrilhantara no pobre e feérico salão de baile de Tocaia Grande? O número exato nem ele sabia, nem ninguém, tantas tinham sido, cada qual mais animada. Mas os que participaram do dançarás inicial jamais o esqueceriam por motivos vários que tiveram a ver com a abrupta presença da morte e a proclamação da vida.”
Ora mergulhando no trágico:
“Somente então, ao abrigar-se em casa dos padrinhos, Bernarda estremeceu de medo: não dos perigos da enchente, não era medo de morrer. Muito pior: teve medo da bondade, das abnegações da vida. Bem Coroca lhe avisara: quando mulher-dama bota menino no mundo, um dos dois se prepare para sofrer. Ou o filho na desvergonha e no descaso dos puteiros ou a mãe partida no meio, o coração fora do peito.”
O tempo não permite nos estendermos em análise mais profunda de Tocaia Grande como paradigma da obra de Jorge Amado. A comparação entre este romance da maturidade e os anteriores do grupo do cacau revela uma crescente sofisticação no tratamento tanto da linguagem e quando da construção das relações sociais e humanas. Mantêm-se, no entanto, a visão de uma sociedade em gestação, evoluindo sobre relações econômicas arcaicas, com o conflito entre os comportamentos dos diversos grupos. A luta de classes presente nos primeiros romances perde seus contornos ideológicos e transforma-se numa trama complexa de valores humanos, tanto coletivos como individuais.
Acrescento uma última palavra sobre Tocaia Grande antes de continuar. É para lembrar o quanto de experiência vivida tem toda a obra do escritor — no que, sem dúvida, não está só, é o caso de seu modelo, Dickens — e o retorno que se repete em diversos livros das inundações e das doenças a que assistiu na infância. Outra presença forte, a do candomblé, a do sincretismo religioso.
Em 1988, com O Sumiço da Santa — que ele dedica a mim —, Jorge volta à cidade da Bahia e às questões do sincretismo e dos preconceitos. Na narrativa da manifestação de Yansã, descreve Mãe Menininha:
“Apoiando-se sobre os quadris e o antebraço, Oyá se estendeu aos pés de mãe Menininha do Gantois, mãe de bondade e de sabedoria, rainha das águas calmas, imensa e majestosa. Grande o bastante para acolher em seu colo os montes e vales, as tristezas, as penas, as súplicas de seus filhos e filhas, o povo da Bahia.”
Mas Sumiço da Santa não é primordialmente uma história de sincretismo religioso, ou “Uma história de Feitiçaria”, como está no subtítulo: sob o fundo de um delicioso retrato da cidade do Salvador — numa multidão de personagens que em grande parte incorpora amigos e figuras da vida baiana —, é sobretudo, o conto de libertações pessoais, a derrota do preconceito.
Uma novela curta, A Descoberta da América pelos Turcos — eco ainda de Tocaia Grande — aparece em 1994, depois de Navegação de Cabotagem. É uma deliciosa história sobre a influência dos imigrantes sírios e libaneses — turcos, no início do século XX, por causa da dominação otomana — e sobre a beleza e a felicidade.
Jorge foi sempre muito ligado à família. Brincava muito que Lalu, sua mãe, preferia Joelson, filho do meio, por ser médico — era pediatra. Admirava a alegria de viver do irmão, sua capacidade de se readaptar à vida quando praticamente perdeu a visão. Mas a identidade com o mais moço, James, também escritor, e, em dez anos mais moço, seu retrato idêntico, foi também uma cumplicidade e uma compreensão de toda a vida, estendida por seu casamento com Luiza Ramos, filha de Graciliano Ramos — outro grande romancista brasileiro —, que também muito contribuiu com a revisão da obra de Jorge.
De duas coisas Jorge dizia ter vaidade: ser o motivo para tornarem-se baianas duas pessoas nascidas em outras terras, Pierre Verger e Carybé, um o francês, o etnógrafo, o fotógrafo maior, o feiticeiro que conhecia os mistérios maiores do candomblé, outro o argentino de pai italiano e mãe brasileira, o pintor e escultor que mais compreendeu o povo da Bahia, parceiros ambos, ambos tendo ido buscar na Bahia a cidade e a gente que haviam descoberto em Jubiabá.
Jorge era um devoto da amizade. A ela dedicava ritos — cartas e cartões, lembranças das viagens pelo mundo, palavras de solidariedade, batalhas pela sobrevivência. Escreveu:
“Onde quer que eu chegue, tenho mesa posta e alguém que me diz uma palavra amiga. Esse o prêmio, a razão e o compromisso.”
Tinha amigos através do mundo: entre os grandes, o escritor Ilya Eremburg, a romancista Anna Seghers, o cantor Georges Moustaki, o arquiteto Oscar Niemeyer, os poetas Pablo Neruda e Nicolás Guillén — padrinhos de sua filha Paloma —; e entre os homens do povo, o Obá Camafeu de Oxóssi, o capoerista mestre Pastinha, os pintores Cardosinho, Willys e Licídio Lopes, a vendedora de acarajés Vitu, as cozinheiras de restaurante popular Mimi, em Lisboa, Maria de São Pedro, na Bahia, o garçon Tan, no chinês de Paris, os comerciantes de Marais, tantos mais. Sou, com orgulho, um desta multidão, sua amizade foi um marco em minha vida.
Quando fui Presidente da República, ele me ajudou a negociar com o embaixador Jorge Bolaños o restabelecimento de relações com Cuba. Convidei-o para ser embaixador do Brasil na França, convidei Zélia a ser ministra da Cultura, ambos recusaram. Mas engrandeceu duas viagens oficiais que fiz, uma a Portugal e Cabo Verde, outra à França e à União Soviética. Aí testemunhei a consagração que os alunos da Universidade de Moscou lhe fizeram, as palmas intermináveis que assistimos com alegria.
Pude homenageá-lo. A 2 de julho de 1986, na data da independência da Bahia e do aniversário de Zélia Gattai, participei da instituição da Fundação Casa de Jorge Amado, destinada a preservar seu patrimônio, obra que entregou às mãos competentes da poeta Myriam Fraga. Na inauguração da Casa, no ano seguinte, assisti às bênçãos conjuntas de Dom Timóteo Amoroso Anastácio, abade do Mosteiro de São Bento, e de Luís da Muriçoca, babalaô. Jorge dizia pela boca de Pedro Archanjo: “Meu materialismo não me limita.”
Jorge não ligava para formalidades, libertara-se havia muito das vaidades, embora não das emoções, como quando recebera das mãos de Mitterrand a distinção de Comendador da Legião de Honra da França, na companhia de Federico Fellini, Joris Ivens, Norman Mailer, Alberto Moravia e Yachar Kemal. E era capaz de transformar os insultos em títulos. Volto a citá-lo:
“Romancista de putas e de vagabundos, classifica-­me com menosprezo um graúdo da crítica literária. A classificação me agrada, passo a repeti-Ia para definir minha criação romanesca.
Gosto da palavra puta, simples e límpida, tenho horror aos termos prostituta, marafona, pejorativos e discriminatórios. Em três palácios de Governo relembrei que sou apenas um romancista de putas e vagabundos, colocando o acento na palavra puta, com júbilo. No Palácio do Planalto, em Brasília, na cerimônia de criação, por José Sarney, então Presidente da República, da Fundação cultural que leva meu nome. No Palácio do Conselho de Estado, em Sófia, na Bulgária, ao receber o Prêmio Dimitrov. No Palácio de Belém, em Lisboa, quando o Presidente Ramalho Eanes me retirou da condição de ‘escritor maldito’ e me entregou a Ordem de Santiago à Espada. Em toda circunstância, a meu lado, as putas e os vagabundos.”
Brindo com uma última frase de Jorge Amado, e com ela celebro seus 100 anos:
“Contado o conto, erguem-se os cálices, bebe-se à amizade, sal da vida.”
Aqui vejo entrar nesta sala e na minha imaginação os mais de cinco mil personagens de Jorge Amado, todos eles vivos, respondendo presente. Eles são eternos na memória do povo brasileiro, na literatura brasileira.
De Jorge quase todo dia repito uma frase, eu que já estou também ficando mais moço. Uma vez perguntou a Neruda: “— Neruda, e fulano?”, e ouviu a resposta: “— Jorge, não pergunte por ninguém, todos já morreram”. Eu também faço assim. Quando me perguntam por alguém, eu digo: “— Repito como Jorge Amado: não me perguntem por ninguém. Todos já morreram.”
Só não morreu Jorge Amado.

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