terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Segundo Vestibular UnB/2005: reflexão histórica sobre a “conciliação” na política

Por Said Barbosa Dib*
 “A pátria não é um monopólio, a Pátria são os que não conspiram, os que não sublevam. Não foram poucas as ocasiões em que se tentou fazer dela e de seus símbolos monopólio de uma classe, de uma corporação, de uma ideologia. A pátria não é ninguém: são todos; e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à idéia, à palavra, à associação. A Pátria não é um sistema, nem uma seita, nem um monopólio, nem uma forma de governo: é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade. Os que a servem são os que não invejam, os que não infamam, os que não conspiram, os que não sublevam, os que não desalentam, os que não emudecem, os que não se acobardam, mas resistem, mas ensinam, mas esforçam, mas pacificam, mas discutem, mas conciliam, mas praticam a justiça, a admiração, o entusiasmo.”

Rui Barbosa, símbolo de civismo e dedicação ao Brasil em palestra no Liceu do Colégio Anchieta de Friburgo, em 1903.



11 de junho de 2005. Primeiro dia do último vestibular da UnB. Questões “politicamente corretas”, textos bem selecionados e explorados, interdisciplinaridade empregada com equilíbrio, visão crítica e tudo que se poderia esperar de uma boa prova. Foi esta a sensação que se teve quanto à forma. Divulgado o gabarito oficial, percebeu-se que, quanto ao conteúdo, houve problemas. Trata-se do aspecto ideológico que permeia o arcabouço teórico e o conteúdo ministrado dia-a-dia aos alunos e que, por isso, acaba sendo cobrado no vestibular. Na verdade, o que se tem observado é a hegemonia sufocante do “materialismo histórico e dialético” de Karl Marx que, como se sabe, tem como princípio maior não a valorização da noção de Estado-nação, o patriotismo ou a idéia democrática de respeito à ordem pública e à paz social, mas a idéia de “luta de classes”. E o que seria uma pretensa fraternidade internacionalista “proveitosa” para o “proletariado expropriado de todo o mundo”, vendo na democracia representativa algo como um “anacronismo burguês”. 

“Conciliação”: qual o problema em tê-la?

Assim, quando se analisa historicamente a capacidade política da elite brasileira em administrar conflitos, num mundo saturado de revoluções, guerras, carnificinas e ódios, coloca-se a idéia de “conciliação”, sempre e a priori, como elemento necessariamente negativo, pois seria contra o velho princípio marxista do “quando pior melhor” para que a “revolução” e “a emancipação dos trabalhadores” fossem viabilizados; ou seja, pela concepção marxista da História o certo é “botar fogo na fogueira” para se viabilizar as tais “rupturas estruturais”. A verdade é que tais concepções, hoje, são hegemônicas nos manuais didáticos, tanto do Ensino Fundamental quanto do Médio. Se algum professor falar de pacto social, de consenso ou se atrever a destacar a capacidade de conciliação de figuras históricas como Rui Barbosa, D. Pedro II ou Joaquim Nabuco - e da elite política brasileira do Segundo Reinado -, como algo muito proveitoso para a nação, logo será jogado na fogueira ardente do repúdio ideológico. Não se admite que tal característica tenha sido muito importante para que mantivéssemos nossa integridade territorial continental, a consolidação do Estado brasileiro e para que não nos tornássemos um mísero Paraguai. Exemplo curioso aconteceu, justamente, naquele vestibular de inverno. Na “chamada” de uma questão, que falava do governo JK (a questão tinha o número 59), havia indução ao leitor ao se colocar a “conciliação” no cenário político, necessariamente, como um malefício, algo ruim para o que consideram a “necessidade de rupturas”, afirmando: “diferentemente de outros países, a capacidade brasileira de superar impasses políticos permitiu que fôssemos um país sem grandes rupturas”. Ali estava dada a senha para o problema: segundo os livros aceitos pelo Index Librorum Proibithorum vermelho, não ter tido rupturas teria sido a nossa grande desgraça. Isto quer dizer que, ter estabilidade e permanência institucional, como houve no Segundo Reinado no Brasil, como os EUA relativamente tiveram ao longo de sua História (com uma única Constituição desde sua fundação, por exemplo) e como gostaríamos que acontecesse no Brasil, hoje, na visão marxista, não seria muito bom. Na proposição 59, vinculada à mesma “chamada” citada acima, onde o aluno teria que responder objetivamente se era verdadeiro ou falso, lia-se: “Uma circunstância fortuita, a morte de Tancredo Neves dá o toque simbólico das transições negociadas, que, historicamente, caracterizaram a política brasileira. Diante dessa circunstância, o primeiro presidente civil pós-regime militar, a quem competia desenvolver o processo de redemocratização do país, foi José Sarney, um dos esteios políticos dos governos militares”. É lógico que, para os parâmetros da História ensinada aos nossos filhos por esses professores, o aluno, para “passar” no vestibular, tinha que marcar obrigatoriamente VERDADEIRO, mesmo que discordasse desta tese ideológica. Não se considera a importância da capacidade de um líder como Sarney de administrar a situação explosiva em que a nação se encontrava no momento da transição democrática, quando ainda havia extremismos tanto à esquerda (revanchismo dos esquerdistas) quanto à direita (“Linha Dura”) que poderiam inviabilizar a governabilidade de um país de dimensões continentais. A questão, dentro dos pressupostos dialéticos impostos, logicamente foi considerada “verdadeira” pela UnB, como se pode conferir no gabarito. Sarney, conhecido conciliador, democrata, negociador nato, é considerado “esteio da ditadura”, sem choro nem vela, talvez porque sempre foi um político que jamais se encaixou no estereótipo explosivo e irresponsável do revolucionário marxista ou agitador fascista. Segundo essa gente, Sarney teria feito uma coisa “horrível” (para eles): evitado o derramamento de sangue, o retrocesso totalitário ou a revolução proletária que escancararia nossa soberania aos interesses internacionais.


Ideologia: generalização como instrumento político

Na verdade, tal posição é simplismo não admissível para uma análise historiográfica séria. Desconsidera totalmente o contexto histórico do período de exceção, como o fato de que Sarney tenha sido o único governador que protestou formalmente contra o AI-5, enquanto os outros se calaram, tendo também, por diversas vezes, feito pronunciamentos no Congresso advogando a necessidade de retorno à normalidade democrática o quanto antes. Simplismo, também, porque, pelas suas peculiaridades políticas conciliadoras, Sarney não diferia em nada de um Tancredo ou de um Teotônio Vilela. Este último, assim como Sarney, também participou da ARENA, mas nunca deixou de ser um ícone da luta democrática. O primeiro, Tancredo, em outro contexto, o da Ditadura Vargas, foi chefe do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda -, notório instrumento de doutrinação ideológica e de repressão à liberdade de expressão num contexto de guerra. Mas este fato, também, não impede que se possa afirmar que Tancredo tenha sido um batalhador pela democracia no Brasil. Afirmar que Sarney, apenas por ter sido membro destacado da ARENA, partido de apoio ao regime militar, tenha sido “esteio da ditadura”, é incorrer em erro histórico inadmissível e prejudicial para a compreensão do que se passou. É generalização equivocada tão perigosa como se, no governo Lula, que esteve evolvido em denúncias de corrupção (“mensalão”), se dissesse que absolutamente todos da base governista fossem corruptos. O que não parece razoável. Sarney, em decorrência de diversos discursos conciliatórios e pró-restauração democrática, foi alçado à condição de presidente da ARENA por Geisel, justamente no momento em que, depois da morte do jornalista Wladimir Herzog, o presidente teve que peitar a “Linha Dura” e os setores mais conservadores da ARENA. Sarney, justamente pela sua história pessoal vinculada à luta democrática, foi a pessoa certa para aquele papel, o que lhe proporcionou grande oposição interna na própria ARENA. Por outro lado, não se pode esquecer que Sarney foi da ARENA por imperativo da situação política pós-64, pois, com a imposição pelo AI-2 do bipartidarismo, a participação num ou noutro dos dois partidos existentes à época não era livre jogo de vontade, mas imposição. Como Sarney tinha sido da antiga UDN, partido historicamente antigetulista e radicalmente contrário à Jango, não haveria sentido não optar, diante do arbítrio do bipartidarismo, naquele momento, pela ARENA. Isto porque, o então governador Sarney, por ter sido da ala progressista da UDN (a chamada “Bossa Nova”) e por ter combatido a outra ditadura, a de Vargas (cujo aliado no Maranhão era Vitorino Freire, maior inimigo de Sarney), não tinha como ficar a favor das irresponsabilidades político-institucionais do petebista Jango. Se tinha que optar, teve que ser necessariamente pela ARENA, pois a maioria dos elementos dos antigos PSD e PTB foi para o MDB. Ou seja, assim como o jovem vestibulando foi obrigado a marcar como “verdadeira” a “proposição 59”, Sarney tinha apenas duas opções excludentes. Acabou na ARENA.


Sarney: garantia moral do processo de abertura

Ao longo do governo Geisel, Sarney tinha se manifestado reiteradas vezes em favor da política de distensão inaugurada pelo presidente. Já no início de dezembro de 1977, segundo a revista Veja, declarou-se um "otimista no processo de redemocratização". Garantiu o fim da "hibernação política provocada pelos acontecimentos de 1968", pois "o desenvolvimento econômico é incompatível com o subdesenvolvimento político". Em sua opinião, a ARENA amargara os resultados de uma derrota eleitoral em novembro de 1974 porque "não soube encarnar o espírito de um país que, ao longo dos últimos dez anos, modificou-se estruturalmente, se modernizou e não suportava mais um regime de força". Em setembro de 1978, depois de uma série de pronunciamentos em apoio à abertura do regime, Sarney foi convidado pelo Presidente Geisel para que convencesse os arenistas sobre a importância da continuidade da distensão. O objetivo de Geisel era convencer os setores da ARENA, ainda influenciados por posições radicais influenciadas pela “Linha Dura”, a aceitarem a redemocratização planejada. Para esta tarefa, segundo o Presidente, “nada melhor do que alguém com o perfil de Sarney, conhecido por seus posicionamentos democratas”. Na qualidade de relator do projeto de reformas políticas que visava a garantia do processo de abertura “lenta, gradual e segura” de Geisel, Sarney entregou ao presidente o relatório, constando entre outras alterações mudanças nas medidas de emergência, a eliminação da suspensão automática dos mandatos parlamentares e a liberalização para a formação de partidos. Segundo Sarney, em relação à "ordem constitucional" o projeto restaurava o estado de direito e, em relação à "ordem política", não esgotava as "aspirações liberalizantes, nem da sociedade, nem do próprio governo". Por esse motivo, achava que o MDB não podia deixar de apoiar o projeto, pois ele consagrava todos os seus temas de campanha nos últimos anos: o fim do AI-5, a restauração do estado de direito e a superação dos atos de exceção. Mais tarde, já no governo Figueiredo, mais comprometido ainda com a necessidade de abertura política e já com a volta ao pluripartidarismo, Sarney foi designado pelo presidente para negociar com as oposições, por um lado; e, por outro, promover mudanças internas no então PDS, que permitissem a aceitação, pelos membros do partido, da linha política voltada para uma abertura política responsável e irreversível. Portanto, os esforços do político maranhense pela volta à democracia não começaram com a formação da “Frente Liberal” e as negociações com Tancredo. Pelo contrário, Tancredo e Sarney se aproximaram justamente porque tinham objetivo em comum há muito tempo: a retirada do Brasil do umbral da ditadura militar. Só que um no MDB e outro numa batalha interna na própria ARENA. Já no PDS, partido criado em substituição à ARENA, tão logo Sarney percebeu que seus esforços dentro do partido encontravam resistências substanciais, não pensou duas vezes e passou a apoiar o que, naquele momento, parecia ser a única forma de se garantir a transição democrática: o apoio ao mineiro Tancredo Neves. 


Fatos que muitos professores de História se esquecem ...


Mas não foi somente durante a ditadura que Sarney lutou pela democracia. Desde o início de sua carreira política tomou posições progressistas, que, hoje, jamais são destacadas pela mídia e pelos professores de História apaixonados por teorias. Como o fato de que um notório intelectual de esquerda, firme em suas posições, como Glauber Rocha, já ter inclusive colaborado nas campanhas políticas de Sarney para o governo do Maranhão em 1965, um ano após o golpe. Sarney, como outros quadros da ARENA, já havia participado de um movimento reconhecidamente democrático, a chamada “Bossa Nova” da UDN, setor progressista, nacionalista e contrário a qualquer solução de força. No início da década de 1960, este grupo participou das primeiras articulações do auto-intitulado “Movimento Renovador da UDN”. Empossado Jânio em janeiro de 1961, três meses depois, numa convenção em Recife, o grupo apareceu ostensivamente, já com a denominação "Bossa Nova", pregando uma linha de centro-esquerda, inspirada no programa de desenvolvimento com justiça social da doutrina da Igreja. Em termos políticos, o grupo apoiava as propostas reformistas que eram consideradas nacionalistas e de interesse popular, tais como as leis antitrustes e de remessa de lucros, a defesa das riquezas minerais, o combate à inflação, a reforma da lei de imposto de renda e a extinção das ações ao portador, entre outras. No entanto, mesmo com este perfil progressista, quase todos que participaram do movimento acabariam se vinculando, depois do AI-2, à ARENA. Ao se considerar a “proposição 59”, portanto, como verdadeira, infelizmente, iguala-se o trabalho do historiador à visão reducionista e tendenciosa da mídia, sempre distante da necessária cautela ideológica que o tempo trás. Isto porque os jornalistas nunca esclareceram à opinião pública, por puro preconceito contra um político nordestino e de origem humilde, a verdade histórica: além de Sarney ter sido o primeiro governador a ter coragem de condenar o AI-5, durante todo o regime de exceção, servindo de “algodão entre cristais”, soube se colocar como elemento de contenção dos setores da “linha dura”, por um lado, e dos políticos da oposição mais exaltados, por outro. 


Gabarito oficial da UnB: marxismo vulgar


A verdade é que o gabarito da UnB reflete não apenas a visão tacanha dos professores do Departamento de História da UnB, mas de grande parte dos professores secundaristas. Tal visão tem base difícil de superar: a estreiteza que reina hoje no meio acadêmico na área da História, excessivamente contaminado pelo marxismo vulgar. Esta mesma incompreensão vem sendo motivo, também, de interpretações equivocadas sobre o maior estadista brasileiro: Getúlio Vargas. Isto porque se ignora que Vargas, baseado numa concepção também conciliadora e construtiva da nacionalidade, diferente das concepções marxistas importadas na época - que pregavam a “luta de classes” e o divisionismo entre brasileiros -, procurou agradar não setores específicos, mas o interesse geral, o que implicou em grandes incompreensões sobre seu governo, algo que perdura até hoje. O importante é não se esquecer que o governo Vargas, mesmo enfrentado uma guerra externa e interna contra radicalismos, também se manteve como uma espécie de “algodão entre cristais”, permitindo a construção da nacionalidade e administrando conflitos: ao mesmo tempo em que resguardou as posições econômicas dos grupos agro-exportadores tradicionais, também procurou favorecer a marcha dos setores emergentes, principalmente da burguesia industrial, mas sem permitir jamais o abandono dos interesses dos trabalhadores, até então controlados por grupos impregnados de posições ideológicas estrangeiras pouco preocupadas com a harmonia e o desenvolvimento do Brasil. Esta foi a principal contribuição política da Era Vargas e um dos fatores mais importantes para a criação de uma infra-estrutura industrial e um arcabouço institucional de proteção ao trabalho, o que permitiu que o Brasil pudesse desenvolver um capitalismo nacional com imenso potencial. Mas, a posição de Vargas, pelo menos teoricamente, era - e é - o que se deveria esperar de todo Presidente, assim como a de Sarney. Aliás, é isto que prega a nossa Constituição no seu Art. 78. Ou seja, o que a dita “esquerda” nunca perdoou nele, foi a capacidade construtiva de um verdadeiro estadista em governar conflitos - e de se preocupar não com os interesses de poucos, mas com o bem geral da Nação -, o que evitou, assim, a eclosão de uma convulsão social que inviabilizaria a transformação do Brasil numa grande potência (a tal ruptura que a questão da UnB coloca como se fosse grande coisa); e que facilitaria a atuação de forças internacionalistas monitoradas no País, seja pela URSS, seja pelos EUA. Tal postura varguista, na visão apequenada das esquerdas amestradas, quebrava seus dogmas importados que pregavam a tal “luta de classes”. Daí a necessidade deste setor político de estigmatizar Vargas como um demagogo, um “populista”. Era necessário afastar este político com verdadeiro espírito republicano que se tornara um empecilho ao que chamavam de “inexorável processo histórico” que levaria “os trabalhadores de todo o mundo” ao poder. Este fato explica o motivo pelo qual, no meio acadêmico, predominantemente marxista nos anos 50 e 60 (e, ao que parece, ainda hoje), forjou-se a idéia de que a existência de políticos conciliadores é algo ruim para o país, daí o conceito anêmico de “governo populista” como algo negativo e mesmo pejorativo. Ter efetiva liderança sobre as massas, que não fosse de inspiração internacionalista, que representasse soberanamente os interesses nacionais, que procurasse o vetor comum entre os agentes sociais, foi “pecado” imperdoável de Getúlio para a visão estreita da dita “esquerda”. A partir de então, qualquer político nacional que fosse independente, que realmente se interessasse pelo bem comum, que mostrasse alguma preocupação com o interesse nacional, que exercesse efetivamente uma liderança popular e patriótica; e que se comprometesse com a governabilidade e a administração de conflitos, seria irremediavelmente “carimbado” pela inquisição dos amestrados por Moscou - ou pelos EUA - como “demagogo”, portanto, jogado na vala comum da pecha de “populista”. 


A conciliação como instrumento da Democracia

O que os colegas professores de História devem levar em consideração é o fato de que, enquanto José Genuíno, Dilma e CIA assaltavam bancos, durante a ditadura, figuras como Teotônio Vilela e Sarney tentavam caminhos políticos para apaziguar os conflitos entre os brasileiros, mesmo que, para isso, tivessem que atuar num partido de apoio aos governos militares. Como político experiente, Sarney sabia que não seria através da radicalização e do “jogo de cena” dos esquerdistas que teríamos uma solução para o estado de exceção, como a História viria a demonstrar. Talvez, justamente por esta característica, mais tarde, soube enfrentar uma situação tão difícil como a morte de Tancredo e suas conseqüências políticas dentro do processo de redemocratização. De repente, alçado à frente de um processo que já vinha sendo negociado, discutido e mediado com cuidado pelo líder peemedebista há anos, teve de assumir compromissos que não eram diretamente seus, posição de liderança que não esperava e não desejava. Mas, pensando no país, como agente moderador, Sarney enfrentou não somente as profundas dificuldades socioeconômicas herdadas, mas o perigo constante e ameaçador das forças antidemocráticas, tanto à esquerda quanto à direita, mas sempre negociando. Com cautela e espírito democrático, impôs sua figura política, administrando tanto a empolgação revanchista da oposição, quanto as resistências sinistras da “linha dura”. Evitou, assim, um retrocesso, mesmo que tenha pago caro politicamente por isso. Pensador e poeta engajado na luta libertária, na defesa das instituições democráticas, este líder sempre teve na paciência e na perseverança as suas maiores virtudes. Virtudes que foram imprescindíveis para enfrentar as dificuldades que a Fortuna lhe reservaria a partir de abril 1985. A verdade é que a missão de Sarney não foi nada fácil, longe disso, pois, além dos profundos problemas políticos e econômicos que herdara, a imprensa, amordaçada por tantos anos e aproveitando-se da frustração das massas, em decorrência da morte do Presidente eleito, durante todo o seu governo não deu tréguas. A imagem que fizeram dele não foi nada honesta. Não havia qualquer clima favorável ou mesmo compreensão, por parte da mídia, para a necessidade, pelo menos, de se dar um tempo para se construir a governabilidade. O Presidente Sarney teve que conquistar esta condição, a despeito da imprensa e dos que se diziam aliados, ou seja, só pôde contar consigo mesmo, com boa-fé e sua extraordinária vontade política. Quanto às acusações insólitas de que era “titubeante”, “indeciso” ou “fraco” ninguém percebia, à época da Nova República, que era precisamente o que “parecia” ser fraqueza o maior trunfo e a maior força de Sarney, político experiente, extremamente determinado e que, mais do que ninguém, sabia negociar e esperar. Virtudes que foram decisivas para a normalidade democrática num momento em que saíamos de anos de ditadura, onde a transição, mais do que nunca, exigia negociação, que sempre demanda paciência, tempo e bastante conversa. Mas, traumatizada com sucessivos presidentes autoritários, a imprensa passou a confundir respeito para com as diferenças e diálogo constante com fraqueza. Posando de democratas, na verdade, as cobranças ingênuas dos jornalistas pareciam encarnar a máxima irônica de Hitler, ao ridicularizar a lentidão das democracias parlamentares, quando dizia que “as democracias dormem nos finais de semana”. Ou seja, a imprensa, impregnada de simplismos marxistas, não entendia o que se passava, não queria compreender que aquela forma de Sarney governar não era apenas a característica de um político específico, mas a própria essência da democracia. Aliás, ironicamente, as características democráticas de Sarney eram exatamente as mesmas virtudes do falecido Tancredo (caráter conciliador), cantadas em prosa e verso pela mídia, com a diferença de que o político mineiro não viveu para ser acusado de “fraco” pelos irresponsáveis de plantão. Mas, com certeza, isto teria ocorrido se Tancredo tivesse podido assumir integralmente sua missão. Nesta linha de raciocínio - só para que as novas gerações tenham maior compreensão do que estava em jogo - é só imaginarmos o que aconteceria, naquele momento histórico, com os militares ainda fortes, a “linha dura” ferida de morte, mas ainda viva e atuante – e setores da oposição verdadeiramente ansiosos por revanche -, se uma figura explosiva, instável, apressada e inconseqüente, como Collor, assumisse, por algum motivo, a Presidência. Seria o retrocesso, na certa. Uma bomba política. Mas, felizmente, não foi o que aconteceu. O Destino nos deu Sarney e tudo correu com a tranqüilidade necessária. Mas a coisa mais importante - e que a imprensa nunca esclareceu devidamente - e que, hoje, numa perspectiva histórica mais ampla é possível visualizar, é o fato de que Sarney acelerou efetivamente o programa de reformas anunciado pela "Aliança Democrática", cumprindo o prometido aos brasileiros, ao retirar o chamado "entulho autoritário” da legislação: as medidas de emergência, a suspensão dos direitos políticos sem licença do Congresso, os decretos-lei, etc. Mas, principalmente, mesmo desaconselhado pelo jurista e amigo Saulo Ramos – este, temeroso de que as discussões políticas inflamadas influenciassem a governabilidade -, foi Sarney quem insistiu em convocar a Constituinte, verdadeira divisora de águas entre o passado de exceção e o caminho democrático. Todos os políticos da época, mais envolvidos no processo, sabiam que mesmo Tancredo tinha dúvidas sobre a oportunidade em se convocar a Constituinte logo de início. Mas, por decisão de Sarney, naquele momento era criada a "Constituição Cidadã", esta mesma que durante os anos do "tucanato" foi desrespeitada, vilipendiada, massacrada, adulterada e rasgada em prejuízo da democracia e do Brasil. Mas, Sarney, depois de cumprir todos os compromissos assumidos pela "Aliança Democrática", com um ministério que inicialmente não era o seu, teve que suportar ataques gratuitos de todos os lados, mas cumpriu sua missão. Sem o apoio de um PMDB rachado e ansioso por cargos, com o partido concentrado apenas nas disputas e nos debates inerentes à Constituinte, Sarney preferiu se expor a um desgaste natural de um governo com problemas econômicos estruturais graves, que se arrastavam desde as "crises do Petróleo" (1973 e 1979), a trair seu compromisso perante a Pátria. Enquanto isso, a mídia não dava trégua. Tal comportamento, aliás, deveria servir de análise para os estudiosos de comunicação e sociologia. Amordaçada tanto tempo pela repressão e pela censura, a imprensa parecia querer resgatar o tempo perdido, mostrar serviço, atacando com virulência apriorística a Presidência, independentemente de quem estivesse no comando. Havia, portanto, uma confusão perigosa entre Estado e governo. O Estado, a máquina usada durante o arbítrio, não estava mais nas mãos de um tirano, mas de um democrata histórico. Mas, a violência institucional do Estado durante vinte anos fez com que os ditos formadores de opinião ficassem tão traumatizados que, quando obtiveram a liberdade, não estavam preocupados em saber quem estava no poder, quem era governo, mas apenas em atacar qualquer aspecto que lembrasse ou que se relacionasse com o aparelho de Estado. Era o revanchismo burro, que tanto preocupava Tancredo, mostrando suas garras. Sarney foi a maior vítima desta situação que, até certo ponto, é trágica, mas forçosamente compreensível. Talvez, tenha sido esta a herança mais terrível dos anos de ditadura: o remorso e a divisão entre os brasileiros. Mas, contraditoriamente, Sarney, que garantiu a liberdade integral e incondicional para a imprensa, há muito vem sendo a maior vítima dela, sendo imolado durante toda a sua Presidência e nos períodos posteriores. 

JK e Sarney: convivência com as diferenças



Ao lado de JK, José Sarney figura entre os poucos homens públicos que sempre conseguiram conviver sem maiores traumas com a crueldade do dia-a-dia do jornalismo. Talvez a cultura humanista, a visão de futuro e a satisfação com a missão realizada, tenham sido o lenitivo que, nos momentos mais difíceis, fizeram com que o político maranhense, no exercício ou depois do poder, resistisse às pressões que, em outros períodos históricos, resultaram em tragédias. Ao contrário de Getúlio Vargas, que se suicidou, ou de Jânio, que renunciou, de Jango, que fugiu, Sarney teve coragem e continuou. Como se vê, o peso maior não está nas mãos de quem parte, que se liberta da angústia da existência, mas de quem fica com as responsabilidades, principalmente se vindas de surpresa. Para Tancredo, merecidamente, a entrada no Panteão dos heróis nacionais; para Sarney, o peso terrível de ter sido obrigado a assumir seu Destino, com patriotismo e convicção. Tancredo não sabe do que se livrou. Sarney, com a missão já cumprida, espera do historiador, no dizer de Eduardo Galeano, “este profeta com os olhos voltados para o passado”, o reconhecimento justo para com um homem de boa-fé e coragem. 

Conclusão

O caráter conciliador da elite brasileira não é, necessariamente, ruim para o Brasil. Pelo contrário, foi e é responsável por diversos avanços sociais e políticos. Não é por outro motivo que há o desígnio constitucional sensato que exige que o Presidente da República se comporte sempre neste sentido, ou seja, que tenha, por imperativo do Art. 78 da Constituição Federal, que jurar “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a União, a integridade e a independência do Brasil”. Pode-se até esperar, por parte da imprensa, que não haja compreensão de toda esta situação, mas jamais por parte de um historiador. 

Said Barbosa Dib é historiador, analista político em Brasília e, com muita honra, assessor do senador José Sarney

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Acompanhe

Clique para ampliar